Programadores: cuidem do seu cérebro
Nota: Esse artigo é composto apenas de opiniões e experiências pessoais e não contém instruções ou avaliações médicas e psicológicas.
Programar é uma atividade cognitiva exaustiva, e nós humanos não somos máquinas. Raciocínio lógico é apenas uma função do nosso cérebro, e como tudo no mundo, pode ser usado em demasia e exagero. O uso excessivo de raciocínio lógico, atrelado às más condições do mercado de trabalho e suas próprias dificuldades emocionais, poderiam contribuir para uma piora gradativa da qualidade de vida, pessoal e profissional?
Você não é uma máquina
Na minha época de faculdade, lembro de um professor em particular que dizia muitas vezes como programar é difícil, uma das coisas mais difíceis do mundo e que a grande maioria dos profissionais permanece na função no máximo por 10 anos, depois disso migrando para outras atividades como gestão, ou ensino. Naquele tempo eu achava uma afirmação um tanto exagerada, mas pouco a pouco vi isso acontecer ao meu redor e comigo mesmo.
O que torna essa profissão tão difícil não é só a dificuldade técnica, mas como o ecossistema de aprendizado funciona ao longo dos anos, como o trabalho precisa ser executado, como o mercado incentiva a produtividade dos profissionais e como nós descartamos o cuidado apropriado para se trabalhar de forma salubre, muitas vezes nos tratando como se fossemos só neocórtex.
Cérebro Trino
Em 1970 o neurocientista Paul MacLean elaborou um ponto de vista sobre o cérebro humano como composto de 3 camadas funcionais diferentes: reptiliano (ou basal), mamífero (ou emocional, límbico) e racional (ou humano, neocórtex):
- A camada reptiliana é responsável pela regulação básica do corpo, como temperatura, fome, sede, hormônios e reflexos instintivos básicos e reprodutivos. Pense num lagarto ao sol.
- O sistema límbico (mamífero) é responsável pelas emoções e vínculo. Pense nos cachorros por exemplo, que tem essas duas camadas, são super emotivos, amorosos e sem as complexidades da linguagem e pensamento racional.
- E o neocórtex, ou cérebro racional, responsável pelo pensamento abstrato, lógico e criativo, unindo as informações de todos os sentidos. Essa é a parte que nós programadores passamos a maior parte do tempo exercitando.
Cuide e nutra o seu material de trabalho
Um pianista precisa sempre cuidar do seu corpo, particularmente as mãos durante a vida profissional. Da mesma forma um tenista precisa cuidar dos ombros, cotovelos e joelhos. Para além do cuidado físico, designers e artistas cuidam e nutrem sua mente com material inspirador e estilo de vida que proporcione momentos criativos. Apenas virar um programador frenético, aprendendo e escrevendo código o mais rápido possível pelo máximo de horas possível durante anos, seria uma forma inteligente de trabalhar?
Uma típica história
Tive a oportunidade de acompanhar muitos desenvolvedores em início de carreira, e é muito comum histórias como essa ou semelhantes (inclusive a minha). Geralmente no início da adolescência, um jovem conhece a programação e fica super deslumbrado com o mundo que existe dentro do computador e o potencial criativo em se trabalhar com isso. A infinitude de problemas a serem resolvidos é animador e também o próprio processo de “problem solving”.
Uma das primeiras reações é o bloqueio da frustração. Programar, no início, é ao mesmo tempo muito frustrante e muito recompensador. Traduzir seu pensamento criativo em código e ver os computadores e a internet reproduzir isso fielmente é muito gratificante. Ao mesmo tempo são milhares de linhas de código milimetricamente calculadas e apenas uma vírgula no lugar errado faz nada dar certo. A primeira barreira para esse jovem que começa a programar é como lidar com essa frustração, que acontece muitas vezes por dia.
Nesse ponto, se já no mercado de trabalho, é muito normal que essa frustração de uma vírgula no lugar errado esteja acompanhada de uma pressão para entregar projetos na data combinada, na expectativa dos colegas de trabalho e gestores, ou até mesmo atrelada a perda direta de dinheiro e lucro da empresa. Também é muito comum para o jovem nesse ponto, ao invés de lidar com a frustração, bloquear ela à força e o mais rápido possível. Afinal de contas, é um empecilho a resolver essa pressão toda.
De início você pode ficar até orgulhoso dessa capacidade de bloquear a frustração e apenas seguir escrevendo código, estudando cada vez mais, tendo o pensamento cada vez mais lógico e entendendo assuntos mais complexos que antes. Tudo isso vem com recompensas também, como progressão na carreira, reconhecimento e dinheiro. Por um lado, é um dos benefícios da profissão. Te ensina a pensar melhor e a ter perseverança e resiliência, e com os cuidados certos pode ser muito recompensador. Mas por outro lado, ele ou ela pode começar a ter algumas dificuldades.
Primeiro, o prazer e a sensação gratificante de conseguir criar o que quer também diminui, ao mesmo tempo que a frustração diminui. Talvez fique menos emocional, o que pode parecer positivo de início, mas isso acompanha um pensamento e modo de vida excessivamente lógicos e dificuldades de ter laços emocionais, e até mesmo menos conexão emocional consigo mesmo. A pressão, pendências e datas de entrega são tantas que você passa a usar lista de tarefas para tudo, e ao invés de funcionar baseado na sua motivação e o que quer fazer, passa a só fazer “o que tem que ser feito”.
Com o tempo a motivação com o próprio trabalho pode diminuir, já que a sensação de recompensa não é como antes. A sensação de prazer e laços fora do trabalho e até mesmo piadas sem muita lógica podem parecer sem graça. Dessa forma, pouco a pouco a qualidade de vida e do trabalho diminui. Se isso parece familiar para você, é importante observar algumas coisas. E não se engane, é muito mais comum do que você imagina.
Se lembre como você era antes de começar a sua carreira ou no início, veja fotos, pergunte aos outros. Se você mudou muito emocionalmente de forma negativa, preste atenção.
Sinais para observar
Os pontos a seguir não são exclusivos do mundo da programação. Pode e acontece em várias áreas, principalmente financeiras, acadêmicas e executivas.
- Foco exageradamente tenso
- Só saber trabalhar ou viver fazendo multitasking, ou em outras palavras cortar linhas de pensamento com a ilusão de que isso é mais eficiente à longo prazo
- Não achar mais graça de piadas por não serem lógicas
- Ficar cada vez mais estressado no trabalho sem conseguir desestressar
- Compensar a dificuldade de lidar com questões emocionais com excesso de raciocínio (o famoso “racionalizar”), com a sensação que isso é sedativo. Quanto mais você tem conclusões lógicas sobre tudo, “melhor”
- Como consequência, desconsiderar pouco a pouco seus sentimentos e ficar mais distante emocionalmente das pessoas
- Ansiedade
- Cansaço
- Menos amadurecimento e inteligência emocional
É importante não confundir amadurecimento com não sentir e racionalizar. Amadurecimento é a capacidade de não fugir dos sentimentos e emoções, senti-los plenamente, crescer e aprender com eles de forma que se transformem junto com você. Ao mesmo tempo sem ser tomado completamente por eles, experienciando tanto as emoções quanto o pensamento racional e lógico em equilíbrio.
E se eu passei do ponto?
Se você acha que passou do ponto e já não trabalha e vive de uma forma saudável, você pode voltar. Você chegou onde chegou, e pode fazer o caminho inverso também, desde que use o mesmo esforço.
Algumas atividades ajudam bastante:
- Exercício, com regularidade e tempo adequado
- Yoga ou trabalho com a respiração
- Meditação
- Stress hormético
Ao passar muito tempo em estado de estresse, o corpo pode começar a perder capacidade de reagir e retornar ao estado normal. A respiração por exemplo pode ficar curta, e trabalhar com ela pode ajudar a retomar o fluxo padrão. Stress hormético é a exposição a níveis gradativos de stress, propositalmente, para o corpo voltar a desenvolver as substâncias necessárias para combater o estresse oxidativo. Exemplos são treinamento cardio, resistência, jejum intermitente ou até mesmo exposição ao frio e respirações específicas como no Wim Hof Method.
- Improviso, desenho espontâneo, arte, música ou dança
- Carpintaria, tocar instrumento, hobbies
- Ter animal de estimação
Você pode não ser chegado a arte, mas deve ter alguma forma de estimular sua criatividade e especialmente a espontaneidade, nem que sejam filmes e música. A intenção é voltar a incentivar mais o sistema límbico para equilibrar seus estímulos cognitivos e emocionais. Com as 3 camadas funcionando em equilíbrio e livremente, seu corpo, estado emocional e mente racional ficarão mais saudáveis e eficientes.
E claro, é sempre bom fazer exames e checar a sua saúde. Você pode fazer isso com a medicina convencional e alternativa como acupuntura e medicina ortomolecular.
Quanto mais você acha que precisa voltar e se equilibrar, mais terá que mudar a sua vida e continuar buscando formas de fazer o caminho de volta. Pelas mesmas características de adaptação que possibilitaram você chegar onde chegou, é possível mudar de direção. Quando você começar a sentir a mudança terá um bom radar indicando o caminho.
Uma forma mais esperta
O seu corpo, cérebro e mente se influenciam mutuamente. É muito mais esperto você respeitar tudo que eles precisam. O corpo precisa de movimento e atividade. Além disso precisa de boa alimentação e insumos para produzir energia, hormônios e material necessário para sua concentração e bem estar. Seu cérebro precisa do seu corpo funcionando bem e de estímulos para todas as suas áreas, não só o neocórtex. Da mesma forma que seu cérebro tem dois lados, também tem 3 camadas.
Sinta e lide com os sentimentos e frustrações. Cultive seu “mecanismo de recompensa” na vida inteira, não só no trabalho. Equilibre a sua vida, família, relacionamento, amigos e lazer.
Talvez você não possa competir com quem faz um esforço cognitivo desproporcional mas ao mesmo tempo não terá as questões de saúde e sua vida profissional vai durar mais tempo. Se você tiver uma vida com equilíbrio de sono, exercício, lazer, laços emocionais e familiares, vida sexual, espiritual (se você tiver essa inclinação) e estímulos variados de aprendizagem, você vai ter uma vida profissional muito mais prazerosa, eficiente e completa.
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