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Tito Faria
Tito Faria31/05/2023 13:01
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A Internet das coisas quer vigiar você

  • #IoT

Shoshana Zuboff argumenta em seu livro “A Era do Capitalismo de Vigilância” que a internet das coisas não é tão interessante para o usuário quanto é para as grandes empresas de tecnologia que necessitam de uma grande quantidade de dados dos mais variados tipos, para desenvolver produtos de predição e de modificação comportamental. Este artigo é todo baseado neste livro, tanto os argumentos quanto os exemplos. Este artigo está dividido nos seguintes tópicos:

  • Motivações econômicas para a IoT
  • Exemplos práticos de IoT
  • Teoria da modificação comportamental
  • Existem alternativas?

Uma pequena história da minha Alexa:

       Comprei uma Alexa para a minha casa e uma lâmpada inteligente RGB. Para usar a lâmpada, precisava instalar um aplicativo no meu celular. A lâmpada faz conexão com a Alexa e eu posso controlar a cor da lâmpada por comando de voz. Posso acender a lâmpada, colocar ela na cor vermelha, azul, verde, além de outras 65.000 cores. A lâmpada e a Alexa funcionam bem. Ela ouve perfeitamente o que eu falo e muda a cor. Funciona bem até a internet cair ou faltar luz. Porque se a lâmpada perde a conexão com a Internet, começa a piscar como uma louca, e eu preciso abrir o aplicativo, do qual eu nunca lembro a senha, para parear de novo, o que sempre demora, e aquilo que deveria se tornar uma comodidade acaba se tornando um estorvo. Qual a vantagem? Acender a lâmpada por comando de voz. No entanto, é muito mais fácil apertar o interruptor. Colocar luzes coloridas? Na verdade, isso cansa muito rápido. A maior vantagem dessa história toda é a da Amazon, que passa a ter acesso a todas as conversas para fazer treinamentos de máquinas de linguagem natural. A bem da verdade, depois da LGPD eles mudaram os termos de uso, e só começam a gravar depois que o usuário chama a Alexa. As grandes empresas de tecnologia têm muitas vantagens com a Internet das coisas, porque passam a ter acesso a uma quantidade grande de dados para fazer treinamento de máquina e controle de comportamentos futuros. Para o usuário final, nem tanto.

Zuboff abre o seu livro com uma definição do que é Capitalismo de Vigilância:

subst. 1. Uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como matéria-prima gratuita para práticas comerciais dissimuladas de extração, previsão e vendas; 2. Uma lógica econômica parasítica na qual a produção de bens e serviços é subordinada a uma nova arquitetura global de modificação de comportamento; 3. Uma funesta mutação do capitalismo marcada por concentrações de riqueza, conhecimento e poder sem precedentes na história da humanidade; 4. A estrutura que serve de base para a economia de vigilância; 5. Uma ameaça tão significativa para a natureza humana no século XXI quanto foi o capitalismo industrial para o mundo natural nos séculos XIX e XX; 6. A origem de um novo poder instrumentário que reivindica domínio sobre a sociedade e apresenta desafios surpreendentes para a democracia de mercado; 7. Um movimento que visa impor uma nova ordem coletiva baseada em certeza total; 8. Uma expropriação de direitos humanos críticos que pode ser mais bem compreendida como um golpe vindo de cima: uma destituição da soberania dos indivíduos. Zuboff, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância (p. 13). Intrínseca. Edição do Kindle.

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Por que roubar seus dados?

Os capitalistas de vigilância descobriram que os dados comportamentais mais preditivos provêm da intervenção no jogo de modo a incentivar, persuadir, sintonizar e arrebanhar comportamento em busca de resultados lucrativos. Pressões de natureza competitiva provocaram a mudança, na qual processos de máquina automatizados não só conhecem nosso comportamento, como também moldam nosso comportamento em escala. Com tal reorientação transformando conhecimento em poder, não basta mais automatizar o fluxo de informação sobre nós; a meta agora é nos automatizar. Zuboff, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância (pp. 22-23). Intrínseca. Edição do Kindle.

A big data, o Machine Learning e inteligência artificial tem muitas utilidades práticas. Carros autônomos, diagnósticos médicos, assistentes de código, reconhecimento de imagens. Mas existe uma área em que ela dá muito de dinheiro: propaganda. Oferecer o produto certo para a pessoa certa na hora certa. Este tipo de uso da inteligência artificial colocou as Bic Techs entre as empresas mais ricas e influentes do mundo, em pé de igualdade com as companhias de petróleo e os bancos. Mas para mostrar o produto certo para cada pessoa, eles precisam ter a maior quantidade de dados sobre cada uma das pessoas. Saber onde eu moro, quais são os meus hábitos de consumo, que eu gosto de programação, de camisas estilosas, que eu tenho tendência a calvície, gosto de jogar no computador e assim por diante.

Internet – zona militarizada

        Talvez uma definição melhor do que essas big Techs vendem não seja propaganda, seja modificação de comportamentos futuros. Elas podem ser usadas para vender sapatos, mas também podem ser usadas para influenciar tendências políticas, visões de mundo, tendências de moda, hábitos de consumo e percepções da realidade.

             Snowden em seu livro “Eterna Vigilância” mostra que o exército dos Estados Unidos tem acesso a todos esses dados, e que utiliza essas informações para fazer valer os seus interesses econômicos e políticos. As Big Techs são aparelhadas politicamente com o estado Americano, de tal forma que o Governo americano é um conjunto de lobbys das empresas de armas, das empresas de petróleo, das montadoras de carro e assim por diante. Na China não existe Google nem Facebook, eles têm as próprias redes sociais. Eles têm consciência dos interesses militares, estratégicos e biopolíticos que estão por trás das questões algorítmicas.

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Exemplos Práticos:

Google Home:

A primeira versão da casa Inteligente foi pensada no ano 2000 e tinha o nome de Aware Home. Ela abrigava um conjunto de sensores inteligentes: termostatos, câmeras, além de aparelhos vestíveis. Mas ela tinha uma diferença fundamental: os habitantes da casa tinham o controle total sobre os dados que eles estavam fabricando, e esses dados eram guardados dentro da própria casa. Só o indivíduo poderia decidir qual experiência seria renderizada com os seus dados. Em 2018, o mercado de IoT já valia 36 bilhões de dólares e se espera que em 2023 ele valha mais de 151 bilhões. Hoje em dia, para comprar um simples termostato do Google, é preciso ler longas e complicadas políticas de privacidade. Esses dados coletados são compartilhados com outras empresas, que possuem outros contratos de privacidade, o que torna praticamente impossível para qualquer pessoa, mesmo que seja formada em direito e tenha consciência de tudo que está acontecendo de ler todos esses contratos. Em verdade esses contratos não foram feitos para serem lidos, só se espera que a pessoa marque a caixa de li e aceito.

Aspirador Roomba:

Em 2017 o aspirador de pó autônomo da iRobot apareceu nas manchetes quando o CEO da empresa contou para a Reuters sobre a sua estratégia de ganhar dinheiro com a venda de plantas baixas das casas que foram esboçadas a partir das capacidades de mapeamento do aspirador de pó. Este fato fez as ações da empresa dispararem, além disso estavam previstas a instalação de novos sensores no robô. 

A cama Sleep Number:

Agora até mesmo um colchão vem com um contrato de privacidade de 12 páginas. A cama Sleep Number promete uma tecnologia inteligente de rastreamento do sono. Os usuários são incentivados a instalar o aplicativo SleepIQ, para cruzar os seus dados com batimentos cardíacos, tipo de alimentação e movimentos durante o sono, além de coletar o áudio dentro do quarto. Todas essas informações recolhidas do usuário são mandadas para a nuvem e para empresas de análise e coleta de dados, sem que os usuários necessariamente saibam disso.

TV Sansung:

Em 2015, defensores da privacidade descobriram que a TV inteligente da corporação era na verdade inteligente demais, pois gravava tudo o que era dito nos arredores do aparelho — por favor, passe o sal; acabou o sabão em pó; estou grávida; vamos comprar um carro novo; estamos indo ao cinema agora; sofro de uma doença rara; ela quer o divórcio; ele está precisando de uma lancheira nova; você me ama? — e mandando toda essa conversa para ser transcrita por outra líder de mercado em sistemas de reconhecimento de voz, a Nuance Communications. Zuboff, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância (p. 394). Intrínseca. Edição do Kindle.

Smart Watch

             Muitas vezes quando a pessoa compra um celular ganha um Smart Watch de presente. Esse relógio pode ser muito valioso para as empresas de vigilância, porque fornece os batimentos cardíacos e pressão arterial do usuário. Essas informações são enviadas para empresas de análises de dados, que utilizam para diversos fins. De acordo com a LGPD, informações sobre a saúde do usuário deveriam ser consideradas dados sensíveis e não poderiam ser compartilhadas sem a autorização expressa, clara e incondicional do usuário, mas isso não acontece.

Ok Google

             O exemplo mais marcante de coleta indiscriminada de dados é o fato de o Google ouvir tudo o que todas as pessoas falam sem a autorização delas. Isso para fazer treinamento de máquinas de linguagem natural, mas também para fazer propaganda. Já aconteceu com todo mundo de falar com um amigo sobre um perfume ou uma bicicleta, e quando abrir o celular aparecer uma propaganda daquele produto. O Google também vasculha os e-mails do Gmail para oferecer mais propagandas direcionadas.

Privacidade não é a palavra correta

Nesta discussão sobre LGPD e controle de dados, se fala muito na palavra privacidade. Zuboff afirma que talvez esta não seja a palavra correta para se referir a este fenômeno. Não é como se o Zuckerberg quisesse saber aonde eu fui na sexta feira a noite, ou ficar me observando através da câmera do meu celular. O interesse das grandes corporações não é no dado individual de cada um, mas sim no fluxo de dados como um todo. Que é capaz de determinar os interesses de uma população, saber quais são os temas mais importantes. Desta forma o que interessa é a sociedade como um todo. Eu poderia instalar um sistema operacional livre no meu celular, só entrar na internet de maneira criptografada, mas proteger uma única pessoa não vai resolver o problema que se apresenta como um problema coletivo. “Eu não tenho nada a esconder, não tenho medo de que essas empresas tenham meus dados.” – as pessoas dizem. Mas o problema não é sobre mim ou você de maneira individual, é a utilização desses dados para a manipulação de comportamentos futuros em escala planetária.

Existe livre arbítrio?

        Às vezes, quando nós entramos no Google, parece que ele é capaz de ler pensamentos. Ele ainda não chegou neste ponto, mas ele é capaz de ter uma ideia razoável do que nós estamos pensando naquele momento. E se o meu desejo por videogames não foi colocado na minha cabeça por uma grande empresa de videogames, para que eu comprasse o console deles? E se as minhas visões políticas, as minhas visões de mundo foram todas construídas por interesses de grandes corporações que incutiram ideias de maneira subliminar na minha consciência sem que eu ficasse sabendo? Se a nova fase do capitalismo é a manipulação do comportamento e das preferências, quem garante que as minhas ideias são mesmo minhas e não foram implantadas por interesses outros com interesses comerciais, militares, estratégicos e biopolíticos?

             Antes, as propagandas na televisão passavam durante o horário comercial. Eu sei quando a Coca-Cola está fazendo uma propaganda da Coca-Cola. Mas com as novas formas de marketing de guerrilha as propagandas acontecem sem que o usuário tenha consciência de que aquilo é uma propaganda.

Existem Alternativas?

Existem duas alternativas possíveis: a primeira é cada pessoa instalar um sistema operacional livre no computador e no celular, não usar o Google, Facebook, Instagram, Ifood, Uber e TikTok. Só usar conexões criptografadas como o Tor ou o Tails. A segunda opção é conversar sobre o assunto, para fazer pressão no debate público, propor leis, estudar as soluções propostas por outros países como no caso da União Europeia. É nessa solução que eu acredito. E por isso eu falo aqui com vocês.

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